13 de maio de 2009

Mulheres saradas e mulheres inadequadas




Estava visitando, pela primeira vez em mais de dez anos, uma tribo isolada com a qual trabalhei. A viagem envolvia algumas horas de voo em nosso pequeno hidroavião, mais de quatorze horas subindo um pequeno rio numa canoa, e depois uma caminhada de várias horas pela selva. Enquanto eu andava pela mata, já na parte final da viagem, nos sobes e desces, poças e troncos, meu espírito se angustiava. Ia chegar à tribo e sabia que teria de tirar minha roupa e celebrar minha chegada junto com eles, vestida de Eva e pintada de Urucum. Apesar de a chegada ser um momento de muita alegria, o fato de ter de ficar nua perto de meus colegas missionários me perturbava muito. Admito que quando era mais jovem passava pelo ritual da nudez tribal sem tantos constrangimentos... Agora, pesam sobre meu corpo a idade, os filhos que tive e seis anos amamentando sem plástica nem silicone. A coisa já não me parecia mais tão simples.

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Meus companheiros de caminhada eram dois colegas de missão. Um casado com uma amiga e o outro solteiro recém-chegado, vivendo seu primeiro ano na mata. A possibilidade de ter aqueles olhares masculinos sobre meu corpo nu me torturava profundamente. Para os índios a nudez é parte da vida. Talvez uma sociedade nua possa ser até mais honesta; os traseiros são rostos, e, como nos rostos, o refletir do tempo não é uma vergonha, mas uma honra. Porém, para nós, animais urbanos pós-modernos, cidadãos do país campeão mundial em plásticas e implantes de silicone, país cujo símbolo principal é um bumbum feminino, não é assim.

Outra mulher da JOCUM ia comigo, também casada, um pouco mais jovem, estrangeira, e, quem sabe por isto, não tão consciente de seu bumbum. Seu principal ministério é andar pelo mundo a lutar contra as injustiças sofridas pelas mulheres. Não liguei as coisas, o fato de ela estar ali comigo e representar a luta contra a repressão e o abuso contra a mulher nos países pobres. Continuei a me lamuriar pelo que teria de passar e a questionar a validade de meu ministério. Há muitos anos atrás, quando caminhei pela selva numa distância muito maior para descobrir a tribo, nenhum destes questionamentos me passou pela cabeça. Bendita idade da inocência e das coisas em cima... Será que nosso espírito é íntegro e belo na mesma proporção da integridade de nosso bumbum? Ficaria nua não só no corpo, mas também no caráter, no ministério, na personalidade e na espiritualidade. Seria vista no raio X, eu mulher, mais branca do que deveria, mais pesada do que deveria, impropriamente mulher no mundo da supremacia masculina.

O sentimento de inadequação me sufocava. Na verdade, tal sentimento me perseguia havia algum tempo, desde que alguns anos antes assumi um ministério mais público. A partir daí passei a viver como um condenado diante do pelotão de fuzilamento. Um gesto fora do lugar, uma palavra, um grito e pumba, pápápápá, seria o fim... Por quê? Sou mulher.

Foi no meio de um caminho alagado que a voz de Jesus começou a sussurrar em meu ouvido. Mais de meia hora com água pela cintura, cruzando um igapó, (mata submersa) carregando a mochila no alto para não molhar e fincando uma vara na lama à frente antes de pisar para ter certeza de que não havia arraias deitadas esperando para enterrar seu ferrão em nossos pés. O frio da água, a lama dificultando os passos, a sombra do igapó e a voz de Jesus me dizendo: “Fica triste não minha filha, eu te enviei. Você é mulher, mas não é inadequada. É como mulher que você vai pisar lá, levando meu amor de mãe até eles”. Parei,
maravilhada com isto no meio do igapó.
Lembrei-me de minhas colegas de missão que por muitos anos trilhavam aquele mesmo caminho carregando nas costas seus filhos para ir viver na aldeia. Pensei em toda revelação do amor de Deus que elas representavam como mulheres estrangeiras pisando ali, orando e cantando, vivendo Jesus e seu amor pelas viúvas e órfãos da tribo, pelas meninas adolescentes, pelos garotos. Criando seus filhos naquele ambiente, compartilhando com eles sangue e vida.

“Mulher, mas não inadequada” -- repetia enquanto voltava a dar meus passos desajeitados na lama. Chegamos depois de quase sete horas de caminhada. Revi minhas amigas antigas, vi as viúvas, as velhas e as novas adolescentes casadoiras. Conversamos principalmente sobre sexo e comida (os temas principais das conversas em todo mundo e também na tribo). Veio a tanga emprestada e o ritual da pintura, com leite de peito e cuspe. Veio a nudez e ela me caiu bem. Via os colegas de missão há alguns metros de distância um tanto constrangidos. Mas via também a alegria de minhas amigas indígenas e como celebraram minha chegada. Via meu bumbum branco como lua cheia, meus seios à mostra, mas não me envergonhava mais. Não sou inadequada. Estava ali por Jesus e em Jesus me movia.

Minha colega tomou coragem na minha coragem e também se desnudou. Então as meninas da tribo nos tomaram pela mão e nos levaram para outra casa comunitária próxima de onde celebramos longamente e com muito canto, choro e orações, a presença de Deus em nosso meio, no meio do povo, seu consolo para os corações cansados, seu perdão para os corações amargurados. Para aquele momento eu tinha sido feita mulher.

Aquela viagem foi mais do que “missiológica”. Descobri que minha identidade em Deus não tem nada a ver com meu bumbum. Para uma mulher, reconhecer isto significa se libertar de muitas pressões. Significa respirar com liberdade o ar da maturidade, o ar da segurança que não depende da forma física, mas com uma identidade eterna, mais sublime do que esta.

Em momentos como aquele na mata, descobri que Deus não se limita a nosso gênero, como nós nos limitamos. Ele nos usa em todo nosso potencial humano, homens ou mulheres. Porque sou mulher, sou capaz de amar com mais ternura e misericórdia, abraçar, receber, amamentar, encarnar o Deus-mãe que tantas vezes precisamos. Em resumo, tem a ver com ser mulher, e se sentir nua neste mundo masculino, e com o valor que temos diante de Deus, apesar de tudo...

Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, é autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br

2 comentários:

Ruthnea disse...

achei este texto interessantíssimo, pq nos mostra o quanto somos agarrados a propria cultura e que devemos ouvir mais a voz do Espirito Santo do que a voz cultural e machista deste mundo.

Unknown disse...

Bem observado Ruth, a voz do espirito e uma contra cultura deste mundo.

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